Isso só pode ser um sonho.
Acorde, Sara. Você tem que acordar.
Eu estava em uma espécie de bolha – pelo menos era isso o que parecia.
Eu inclinava minha cabeça para frente e tentava ver o que estava à minha frente, mas eu não conseguia enxergar muita coisa.
Estava tudo branco e isso dificultava minha visão. Mesmo assim, eu ainda apertava meus olhos na tentativa de ver algo.
Havia algumas formas que me lembravam pessoas, mas acho que todas estavam de costas para mim. De um jeito ou de outro não passavam de vultos. Os vultos andavam e me ignoravam.
De repente, os vultos ficaram mais nítidos e eu vi um deles sendo arrastado por outros à força.
A brancura ao meu redor foi se fragmentando e eu pude reconhecer as paredes e os corredores de um hospital. E eu reconheci aquele hospital também.
Notei que a nitidez estava apenas voltada para quem era arrastado. Essa pessoa gritava e chorava muito. Ela implorava.
Por favor, pedia. Por favor, não me deixem mais aqui!
Eu queria gritar.
Eu queria ir até lá, correr até lá, e ajudar aquela pessoa.
Mas eu não podia. Eu não conseguia.
Não estava mais em uma bolha, mas estava sendo puxada para longe de todo aquele tumulto.
Eu caí.
Caí no escuro e fiquei sentada. Olhava em volta, mas não via mais nada. No entanto, eu ouvia. Eu ainda ouvia as súplicas e os gritos daquela pessoa. Em meio a eles, veio uma voz diferente. Uma voz que eu conhecia.
Não se preocupe, disse a voz. Tudo vai acabar bem.
Levantei e olhei para cima. Não sabia quem estava falando comigo, mas achava que estava acima de mim.
Por que quer ajudá-la?, perguntou. Ela nunca te ajudou antes, Sara.
Sacudi a cabeça e tentei localizar a fonte da voz.
Agora eu não ouvia mais os gritos.
Não precisa se preocupar mais com ela, Sara. Ela vai esquecer de você logo, a voz continuava a falar.
Um grito – desta vez meu – ecoou pelo ar.
- Pára com isso! – Ordenei.
Atrás de mim, uma porta se abriu. Por ela passava uma luz forte e branca, como a do corredor do hospital. Uma pessoa era jogada por essa porta para onde eu estava.
Ela deitou e permaneceu imóvel. Estava desacordada, mas mesmo estando escuro, eu reconheci que era a mesma pessoa que suplicava no corredor do hospital. Mas, mais do que isso. Eu reconheci suas feições.
Seus gritos eram distantes e chocantes, mas familiares.
Seu corpo era maior do que o meu. Bom, apenas no sentindo de altura. Ela era muito magra. E s não fosse pela desnutrição, poderia ser uma mulher bonita. Cabelos negros e compridos até a cintura. Lisos. Os olhos, mesmo fechados, eu sabia que eram azuis. Um azul bonito e prateado. Metálico.
Meu maxilar tremia para dizer a palavra. Eu podia chamá-la. Eu precisava chamá-la.
Ela não pode te ouvir, Sara. A voz distante falava novamente. Ela se esqueceu de você. Esqueça-se dela também.
Sacudi a cabeça, já chorando aos baldes e resistindo contra a pressão de me ajoelhar.
Como você quer que ela se lembre de você, Sara?Me responda.
Caí, derrotada pelo o que aquilo representava para mim. Olhei para o chão e senti uma lágrima cair da ponta do meu nariz.
Eu sabia que ela tinha se esquecido de mim. Não havia como ela se lembrar de mim, não depois de tudo o que aconteceu com ela. Não sabendo como, mas levantei os olhos e olhei para ela novamente. Ela continuava imóvel, mas agora parecia mais próxima de mim.
Ela não está morta, Sara. Ela pode te ouvir... mas não pode se lembrar.
Respirei fundo várias e várias vezes, contendo o restante do choro. Eu sabia que se eu falasse o que eu tinha para falar, ela acordaria. E eu queria que ela acordasse, mas, ao mesmo tempo, tinha medo. Eu tinha medo de ver o que ele havia feito a ela.
E eu sabia quem era ele.
Eu sabia que a voz vinha dele e eu sabia que se eu pudesse, eu nunca mais o veria. Foi ele quem acabou com ela. Foi ele quem fez ela se tornar o que ela se tornou. E foi ele quem fez ela se esquecer de mim.
Pela última vez, tomei fôlego e me preparei para dizer, mas, de repente, um vento forte começa a levá-la para longe de mim. Mais uma vez a estariam levando? Quando eu a veria de novo? Eu a veria de novo?
Antes que eu pudesse ter a chance de pensar em qualquer uma das respostas para essas perguntas, a voz dele me veio de novo aos ouvidos.
Você demorou demais, Sara querida. Demais.
- NÃO! – Gritei em sentando na cama.
E eu não estava mais lá.
Eu estava de volta ao meu quarto, com a luz do poste da rua entrando pelo vão da janela.
Outro pesadelo, constatei, respirando aliviada.
Passei a mão em minha testa. Eu estava suando.
Olhei o relógio. Seis e treze da manhã.
Estava na hora de acordar, mas não para ir à escola. Hoje não.
Dei por mim que o sonho foi um aviso. Eu precisava vê-la. Mesmo que isso me fizesse manchar minha maquiagem com lágrimas. Eu precisava saber, ver, que ela ainda estava viva."
do svidaniya, Clara Ferreira